sexta-feira, 3 de abril de 2009

O garoto do córrego



O menino que andava de roupas simples que lhe conferiam ar de despojado – calças largas e desbotadas, camisa surrada das diversas vezes que usara, o cabelo penteado conforme a brisa lhe soprava a testa e a nuca. Estevão era despreocupado, despretensioso para a sua pouca idade, os doze anos dava-lhe feições de gente que não tem sequer um caminho a seguir.

Em suas poucas saídas de casa, na periferia da cidade, Estevam era visto caminhando cabisbaixo chutando uma lata amassada de um pé para o outro, e lá ia ele com seus passos entremeados até a beirada do córrego. Nunca ninguém se perguntou o que aquele moleque ia fazer nos arredores do leito da única água que ainda passava transparente por ali. Mas as dúvidas sempre assolavam a muitos, amigos, vizinhos, conhecidos de vista.
- Será que esse menino não estuda? Murmurou um rapaz.
- Que nada... É vagabundo, vai ver foi mendigar por aí! Retrucava uma senhora de rosto pálido pela idade já avançada.

O que ninguém imaginava é que Estevão era até inteligente para a sua idade, fazia o que poucos jamais pensaram em parar para fazer. Não pedia nada aos pais, não reclamava se não sobrava tempo para a peregrinação de todos os dias até o córrego. E o que tinha naquele riozinho de corredeiras tão fracas, quase paradas? Tinha todo o mundo do garoto esquisito, a barragem que ele mesmo construiu com as pedras que costumava retirar debaixo d’ água, as madeiras de poltronas velhas do lixão que ali era amontoado, até uma pontezinha surgiu com o tempo.

Munido de uma peneira velha que achara no lixo, Estevão ia passando na superfície da água, como se peneirasse toda a sujeira que brotava. Dava farelo de pão aos únicos peixinhos miúdos que povoavam o fundo do córrego. Fez daquele lugar pouco visto pelas pessoas seu mundo, com o verde das árvores que aprendeu a cuidar com o avô no quintal de casa, a terra que o pai lhe ensinara a arar para servir de plantio, a água que já chegou a faltar em seu barraco, fazendo-lhe sentir falta de um banho por alguns dias.

Quando o dia amanheceu na velha periferia, dos muros pichados, do lixo espalhado, o nublado das nuvens cinzas dava forma ao céu, anunciando talvez um dos dias mais diferentes que a cidadela cercada de morros já teve. Gil o homem mal encarado da oficina que fazia esquina com a padaria do seu Tonico, e o pedreiro Beto que não tolerava um vento ao contrário no bairro, resolveram seguir e bisbilhotar a vida de Estevam.

Quando perceberam que o garoto ia tomado seus passos, na mesma peregrinação de sempre, a mesma direção, os mesmos lados, Gil e Beto começaram a persegui-lo.
- Ele não deve ir muito longe, está se preparando para ir aprontar mais uma no córrego aqui perto, hoje pegaremos ele no flagra! Ruminou Beto.
- Se eu pegar aquele frangote acabando com a imagem do nosso povoado, vou dar uma surra! Esbravejou Gil.

A hora passava como as gaivotas sobrevoando o céu daquele momento, anunciando que o perigo rondava por ali. Estevão continuava seus passos, assoviando e murmurando algumas poucas palavras.
- Hoje é dia de estar com a mamãe natureza....
E lá ia ele, pensando nas próximas tarefas, no bairro havia rumores de que aconteceria um súbito “apagão”, mas que, sobretudo seria realizado com a colaboração das pessoas espalhadas pelo país.
Pouco interessava apagar as luzes, ainda a no momento em que todos estão assistindo a futebol e novela na TV, seu Tião do empório com mais um de seus churrascos familiares, enfim, a comunidade da periferia daquela região iria fracassar. Mas Estevão não! Sempre precavido, carregava no bolso da mesma calça desbotada uma velha lanterna enferrujada. E lá ia ele debulhado em seus pensamentos “Natureza, não fica com medo, é só por alguns minutos!”.

Gil e Beto já bufavam querendo acabar logo com todo aquele ritual sem nenhum nexo para eles. Esgueirados atrás de uma das poucas palmeiras que ali habitavam, os dois rapazes observavam o momento certo. Ás oito e meia da noite em ponto, Estevão apagou as luzes da lanterna e proferiu um punhado de palavras. Os rapagões, doidos para desferir alguns golpes no garoto, começaram a desfazer os músculos, a afrouxar os dentes, foram compreendendo aos poucos o que estava acontecendo ali.

Uma barragem na caída do córrego segurava todo lixo que Gil, Beto e todo o povoado despejavam por ali, as raízes das árvores estavam todas enfeitadas com as únicas flores que ainda restavam, e o canto do garoto que vivia de conversas com aquela paisagem permanecia ali, intacto, sem nada que pudesse revelar o contrário. A luz da lanterna apagada simbolizava toda a garra e determinação do garoto Estevão, que debochava das coisas incertas da sua gente, mas desabrochava vida para um ser que nunca incomodou ninguém, nem quando brotou folha desbotada, quando a água secou e quando a terra dali não germinou mais.

Um comentário:

Anônimo disse...

Bárbaro!